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terça-feira, 23 de novembro de 2010

Um judas de carne e osso

Autor: Paulo Soriano
Para Maneca Brandão
1
Com um pouco de paciência, é possível que algum estudante de História ou Sociologia, apavorado pela tese de fim de curso, ou mesmo um simples curioso, com a ajuda de um advogado amigo, que não cobre o favor, venha a obter, dos arquivos do Poder Judiciário, os autos empoeirados de um processo há muito findo.
Acompanhando a denúncia de um Promotor de Justiça, que fez nome, mas que hoje goza de uma merecida aposentadoria, existem os autos de um inquérito policial.
É possível trazer à luz, após um sono mais que vintenário, algumas páginas amareladas, carcomidas pelas traças, onde se lê este depoimento (excerto):
“Estado de Pernambuco
Secretaria de Segurança Pública
Departamento de Polícia Civil da Capital
Delegacia Especializada de Crimes Contra a Pessoa
Delegado: Hans Giovanni Bonelli Mueller Jr.
Escrivão: Benvindo Gregório de Mattos
Situação do Declarante: co-acusado
Nome: Jânio Alves da Silva
Vulgo: Coqueiro
Sexo: Masculino
Naturalidade: Catende – PE
Nacionalidade: Brasileira
Data de Nascimento: 18/08/43
Filiação: Eurico Espalha da Silva e Maria do Carmo Alves da Silva
Profissão: Mecânico de Automóveis
Endereço Residencial: Praça Eustáquio Fontes de Menezes, nº 01, casa 06, Campo Grande
Grau de Instrução: primário incompleto
RG nº 11.989.854 – SSP-PE
Cor: Leocoderma (branca)
Estado aparente: bastante nervoso
Religião: Católica
Defensor: Pedro Gomes
Aos costumes, nada disse. Perguntado sobre o episódio ocorrido na tarde de .... de abril de 197... , o qual resultou na morte sw, digo, de Eustáquio Fontes de Menezes, disse que nada presenciou, pois estava passando a Semana Santa com a mãe doente em Catende. Que os familiares e amigos de Catende podem confirmar. Que só soube da morte de Seu Estáquio na Segunda-feira, quando retornou do interior. Que conhecia a vítima, porque era inquilino dela. Que nada tinha contra a vítima, porque graças a Deus trabalhava numa oficina em Água Fria e pagava pontualmente o aluguel. Que conhece a vítima há 07 anos, pouco mais ou menos. (....) Que a vítima era muito odiada pelos inquilinos do Beco do Abacaxi (....) Que conhecia Dona Maria das Dores, porque ela era a sua vizinha (....) Que Dona Maria teve um derrame depois que o filho morreu. Que o filho sustentava ela. Que depois que Pedro, que era o filho de D. Maria, morreu, os visinhos , inclusive o depoente, se cotizaram para pagar o aluguel. Que mesmo assim Seu Estáquio despejou a anciã, dizendo que solidariedade de pobre durava pouco. Que D. Maria ficou com um braço morto, mas andava com certa dificuldade. Que depois do despejo, a anciã ficou sem ter onde morar e vivia de semolas, digo, esmolas. Que D. Maria ficou meio `tantã da bola`, e ouviu dizer que pedia esmolas nas iscadarias da Igreja de Belém. Que ouviu dizer que ela dormia sobre a marquise das Casas Pernambucanas. Que D. Maria morreu atropelada quando atravessava a Avenida Norte. Que tal fato se deu há mais ou menos um ano e meio...”
2
SEU JACÓ
Há mais de vinte anos, antes que toda área fosse herdada pelo Estado – o proprietário não deixou parentes sucessíveis – e construída na área uma escola pública, havia, na esquina da Rua São Francisco com o Beco do Abacaxi, um estabelecimento comercial, misto de bar e mercearia, que, apesar do novo proprietário, e do nome “Mercadinho Nova Esperança”, todos teimavam em chamar “Seu Jacó”.
Da mesma forma que o cachimbo faz a boca torta, há certos comércios cujo nome cria hábito, ninguém esquece e acaba se perpetuando. Por mais que mude de mãos. Mas, no caso que cuidamos, a coisa foi mais longe. Romualdo, o novo proprietário, teve de engolir uma alcunha indesejada, porque o nome corrente do estabelecimento – um nome de gente – passou para ele, por simples assimilação. Afinal, Romualdo era gente. E para todos ele era Jacó. Assim ficou. A princípio, a contragosto. Depois, o homem se acostumou, e a tal ponto que, se alguém chamava por Romualdo em seu bar, o nome entrava por um ouvido e saía por outro, para morrer no ar que recendia a fumo de rolo, cachaça e especiarias.
Jacó tinha um bom costume. Quando o movimento minguava, o comerciante descia uma banda da porta corrediça até o chão e a outra só até a metade, e servia, tomando também, umas quatro saideiras, às suas expensas, em uma das mesas ocupadas pelos fregueses habituais.
Nessa noite, entre uma mesa onde o papo rolava animado, e outra, em que havia uma auréola de consternação, Jacó escolheu a última. É que a conversa parecia importante. Falavam de Seu Eustáquio e da última que aprontara.
Pedro Mello estava inquieto. Não parava de beliscar a almofada de sua muleta, respirando com certa dificuldade o ar pesado - em que o cheiro acre de cerveja estragada pairava sob os odores misturados de charuto, pimenta do reino e cachaça, mas que tudo dominava, como um baixo contínuo de uma orquestra sinfônica -, com tendões do pescoço retesados, parecendo que iriam partir a qualquer momento. Ao falar, com a voz baixa e rouca, não olhava para ninguém:
- É mais outra que o sacana mata, cês não acham? Dona Rosa juntou o dinheirinho dela, coitada, a vida toda. Vendeu até o terreno que tinha no Interior.

- Pois é – interrompeu Coqueiro, brincando com o copo de cerveja, que fazia rolar pela base sobre a mesa gordurosa, mas sem derramar. – A pobre da viúva bordava dia e noite. E bordava bem. Não sei como conseguia.
- Quem mandou confiar no velho? Prefiro confiar numa cascavel num quarto escuro. Velha otária.
Todos se voltaram para Benício – este jovem magro, de cabelos louros e indolentes, manchados de gordura, que acortinavam os óculos “fundo-de-garrafa” – e o fuzilaram com olhar de reprovação. Benício encolheu os ombros, envergonhado, fazendo sumir o sorriso atoleimado, aceitando de bom grado a reprimenda. Pedro Mello retomou o fio dos pensamentos:
- Vendeu até a casinha do interior. Você sabe da história direitinho, Jacó?
- Um bocado.
- E tu, Galo Cego?
- Também – respondeu Benício.
- Eu não sei direito. Tem umas histórias de uns papéis que eu não entendi –antecipou-se Coqueiro, extraindo uma tragada de um cigarro sem filtro.
- O negócio foi assim, para quem não sabe direito. Dona Rosa queria comprar o quartinho. Juntou o dinheiro, vendeu o que tinha. Assinou uns papéis e pagou à vista. Diz Dr. Osvaldo que foi uma promessa de compra e venda. Mas a velha, quando foi reconhecer a firma, para registrar a papelada no cartório, soube que os papéis não valiam nada, porque o velho falsificou a própria assinatura. O velho sacana disse que não recebeu nada e que falsária era a mulher. A velha teve o treco e morreu. Do coração. Então Eustáquio alugou o quartinho desocupado para Hernane, o inquilino novo, que chegou agora em fevereiro.
-E Antônio, que come cadeia até hoje!
-É, até hoje... – A voz de Pedro Mello tremia.
Benício, o Galo Cego, falara mais do que a medida. Arrependeu-se de ter tocado no caso de Antônio, mas era tarde. Desta feita, porém, ninguém o repreendeu.
Pedro Mello meteu a muleta no sovaco, atirou, sem contar, umas moedas e cédulas velhas sobre a mesa, e saiu, antes que as lágrimas tombassem dos olhos que não olhavam para ninguém. Afinal, criara Antônio como se fora seu próprio filho. Mas o que mais doía era não ter como resgatar também o outro gêmeo, não apenas pela falta de dinheiro, mas porque o padrasto era um marginal violento. Nem a sombra de Antônio, inteligente e trabalhador desde menino, desde quando o tirara das ruas e dos pequenos furtos. Inteligente, mas um tanto ingênuo...
3
UM CERTO DEPOIMENTO NUMA CERTA DELEGACIA DE POLÍCIA
(SEGUNDA PARTE)
.... Que Antônio devia muito a Eustáquio. Que Eustáquio cobrava juros muito altos, principalmente dos inquilinos. Que fazia o pessoal assinar promissória. Que com Antônio foi diferente, porque Antônio era servente do INPS e tinha conta em banco. Que Antônio assinou uns cheques em garantia do empréstimo. Que Antônio pagou mais que o principal, mas não pagou parte dos juros porque não podia e por isso foi para a cadeia. Que Antônio respondeu por setelionato, digo, estelionato. Que Eustáquio espulsou a mulher de Antônio e os dois filhos gêmeos do quartinho. Que Pedro Melo acolheu a mulher por uns tempos, mas Eustáquio não queria ela na vila. Que o velho não gostava dela porque ela, depois da prisão de Antônio, recusou um convite obsceno de Eustáquio. Que a mulher de Antônio, depois que saiu da vila, virou mulher da vida. Que sabe disso porque a encontrou na “Baiana”, na Rio Branco ....
4
AINDA EM SEU JACÓ
- .... e o velho desgraçado não precisa explorar o pessoal. O velho é muito rico. Foi até vereador.
- Eu mesmo não voltei nele – Coqueiro atalhou, como que se defendendo, porque Jacó olhava para ele ao carregar nas as últimas palavras.
Antes que uma pequena discussão desse seqüência ao protesto de Coqueiro, uma voz conhecida interveio, aproximando-se do fundo do bar. Com a voz, ganhava volume um forte cheiro de charuto barato:
-Dizem que o danado entregou o filho único à Polícia, por causa de um negócio ilegal, que envolvia os dois. Mas o velho, esperto, não deixou rastro. O filho morreu enforcado na penitenciária.
Era Miro, o poeta, que vinha da outra mesa.
-Trair o próprio filho. Isto é que é um velho filho da puta. E dizem que a morte de Otávio foi queima de arquivo. Eu é que não duvido.
E o poeta concluiu, balançando a cabeça com uma ênfase exagerada:
- Velho Judas!
E então os olhos de Coqueiro brilharam num lampejo. Para o desgosto de Jacó, ali havia idéias: Velho judas... Velho Judas ...
- Velho judas! – Gritou Coqueiro, com um sorriso que amargou os dentes turvos pela nicotina. – Esse ano, na Semana Santa, vai ter diversão. Benício, tu que é estudante... Não, não... Miro, tu que sabe escrevinhar direito, pode preparar o testamento do velho Eustáquio. Porque, neste ano, vai ter judas no beco e o judas vai ser o Seu Eustáquio. Vai ter diversão, e das boas.
E, virando-se para Jacó ( que abanava a cabeça, antevendo confusão), tornou a gritar, com um sorriso de mofa tremendo na face excitada:
-Bota outra saideira aí. Eu pago. Mas a cueca do judas Seu Eustáquio, quem oferece sou eu.
5
UM JUDAS DE PANO
O Beco do Abacaxi não era propriamente uma favela. Os quartinhos de alvenaria se emparelhavam de ambos os lados da viela, um escorado no outro, em seqüência, terminando por se abraçarem no sermi-círculo que se abria adiante, em forma de buraco de fechadura. Na ruela, um automóvel de passeio passava com dificuldade, mas podia contornar a pracinha e voltar à rua asfaltada pelo mesmo caminho por onde viera. Todas as casinholas foram construídas por Eustáquio, que as arrendava com mão de ferro. A pracinha visava a perpetuar o próprio nome.
E, no Sábado de Aleluia, na Praça Eustáquio Fontes de Menezes, os inquilinos haviam erguido uma estátua ao homem que lhe outorgara o nome, em homenagem própria. Só que a estátua não era uma escultura de bronze ou pedra sabão. Era de pano. No centro da praça, amarrado a um mourão de dois metros de altura, havia um boneco de pano, trajado com um paletó cinza puído e calças cáqui muito frouxas, cingidas por um cinturão de couro, rachado e fora de moda. Na cabeça, uns óculos escuros, peruca sintética e um boné do Santa Cruz. Uma cenoura servia de nariz. A boca era pintada com batom e contornada com lápis de sobrancelha. Sobre o espantalho - que, aliás, usava sapatos cavalo-de-aço, com fivelas oxidadas, e cujas mãos eram luvas de lixeiro - havia uma tabuleta que dizia:
O JÚDAS SEU EUSTAQUIO
***
O populacho estava em festa. Todos saíram de seus cubículos e se concentraram na pracinha. Alguns faziam mesuras para o JÚDAS SEU ESTAQUIO, esbofeteavam-lhe as fuças ridículas, e depois desabavam em gargalhadas ferozes. Outros catucavam-lhe os fundilhos com um falo improvisado. Alguém se lembrou de pregar na figura um pênis frouxo e comprido, que se arrastava, mole , até o chão. Miro, que escrevera uma ode burlesca em homenagem ao judas, ultimou o arranjo com um genuíno par de chifres de boi, furtado do matadouro de Peixinhos.
A cachaça rolava. A turba se agitava num burburinho frenético. E chegou a hora mais esperada. A leitura do testamento do JÚDAS SEU ESTAQUIO.
Benício era o testamenteiro. Segurava o testamento, em forma de pergaminho, com ambas as mãos, como um meirinho da Idade Média. Fazia-se muito sério e sisudo. E, a cada item da declaração de última vontade, o populacho ondulava de excitação, entre gargalhadas grotescas e assobios gaiatos.
Benício vez um gesto com a mão, pedindo silêncio. Depois bradou, com afetada empáfia:

- Deixo minha rola murcha para Elza Frufru!
Silvos e urras desgrenhavam o populacho, numa confusão dos infernos. A turba se contorcia como um cão epiléptico.
- Para mim não! – Protestava João Carlos, um mulato alto e de bíceps de lutador de boxe, mas que adorava se pintar como uma prostituta e se esmerava em cantar os rapazinhos de quinze anos. – Pra tua mãe, Benê, que é uma quenga véia – retrucava, com as mãos na cintura, arrancando furioso o lenço de chita vermelho da cabeça.
A multidão reagiu com uma vaia convulsiva.
Benício deu uma gargalhada, que se transformou em riso e depois se congelou num esgar. Os olhos se arregalaram de surpresa e medo.
O carro que se aproximava era o do velho Eustáquio. Decerto, viera cobrar dívidas e aluguéis atrasados, em face de alguma negociata premente, que exigia o aporte de um pequeno capital extra.

O carro estacionou. A fera soltou do LTD Landau.
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UM CERTO DEPOIMENTO NUMA CERTA DELEGACIA DE POLÍCIA
(PARTE TRÊS)
“.... Que certa feita Seu Eustáquio entrou no beco, escoltados por Policiais, e arrancou Benevides do quartinho. Que não sabe precisar o ano. Que Benevides era motorista dele. Que dopois, digo, depois disso Benevides nunca mais foi visto. Que os policiais eram da Polícia Civil. Que na época Seu Eustáquio era Vereador...”
7
UM JUDAS EM CARNE E OSSO

A fera desceu do LTD Landau.
Era um septuagenário baixo, forte, de andar firme e compenetrado. Os olhinhos mui azuis e mui pequenos espetavam-se nas faces róseas com esperteza e sabedoria. O nariz era um gancho e dos lábios nada se via. Vestia um terno branco de casimira inglesa e empunhava uma bengala em que nunca se apoiara, e cuja principal utilidade residia em espancar os menores pedintes que se interpusessem no seu caminho.
A fera mergulhou o charuto na boca, deu um trago forte e o atirou, com força, ao chão. Depois o pisou demoradamente. Quando falou, a voz esganiçada parecia um trovão:
- É assim que vocês recompensam a minha generosidade? Eu, um homem velho e debilitado, corroído pela doença, que construí a vila com sacrifício, movido pela a única intenção de acolher os irmãos necessitados. Eu que, apesar das parcas economias, nunca neguei um centavo aos que me procuram. Eu, um homem pobre e sem família, acaso mereço tamanho maltrato? Pois fiquem sabendo que isso não vai ficar assim...
O velho avaliou o efeito do discurso e gostou do que viu: a turba espantada e temerosa, acuada como um cão indefeso em noite de chuva. Era o momento de tirar proveito da situação.
- ...pois fiquem sabendo, seus ingratos, que isso não vai ficar assim. A partir de hoje todas as dívidas estarão vencidas e o aluguel aumentado em cinqüenta por cento. Senão, rua!
Isso não é justo. – Argumentou Pedro Mello, que se aproximava, a olhar o infinito, apoiado na muleta.
O velho voltou-se para o aleijado com os olhos faiscando de indignação, a ira voltando com o fôlego redobrado:
- O que não é justo, Pedro Mello? Aleijado de uma figa! Sabe quanto você me deve, fora dois meses de aluguel em atraso? É justo que você não me devolva o que tomou de empréstimo, a juros baixíssimos?
- Devo e não nego – sua voz tremeluzia como uma estrela solitária. Depois ganhou volume, num crescente que fez o velho recuar. - Pago quando puder. E não tenho medo de ir para a cadeia. Só assim encontro o meu menino, que você mandou para lá – agora gritava um uivo de uma dor quase animal.

A indignação do velho avançou rente para uma fúria cega. Eustáquio empunhou a bengala e a desceu com força nas costas do homem. O aleijado de uma figa desequilibrou-se e tombou com as espáduas no chão. A perna murcha tremeu ao impacto.
- Oh! – exclamou o populacho.

Mas, para surpresa de todos, e principalmente do velho agiota, o homem cocho ergueu, como pôde, a muleta, e com ela improvisou uma rasteira certeira.
Eustáquio Fontes de Menezes desmoronou, enfiando as fuças rosadas na extremidade do pênis frouxo do JÚDAS SEU EUSTAQUIO.
A turba foi ao delírio.
Coqueiro avançou para o JÚDAS SEU EUTAQUIO e, com um canivete, serrou as cordas que prendiam o boneco ao mourão. O boneco desfaleceu. Apesar de leve, o espantalho derrubou o velho quando este tentava se reerguer.
Eustáquio Fontes de Menezes ainda tentava se desvencilhar de JÚDAS SEU ESUTAQUIO quando o punho vigoroso de Elza Frufru o atingiu em cheio no estômago. O velho abriu a boca, procurando ar. Mas o que veio foi o enchimento de toda a cavidade bucal com bucha de automóvel. Depois o velho se viu erguido pelo sovaco e arrastado até o pelourinho, onde o prenderam com arame de varal. Sobre sua cabeça lia-se:
O JÚDAS SEU EUSTAQUIO
8
DA ESQUINA
Da Esquina Jacó via toda a movimentação na pracinha.
Viu , contendo uma secular gargalhada, quando o velho tombou pela segunda vez. Mas não gostou quando Elza atingiu seu Eustáquio no estômago, nem quando o velho foi erguido no lugar onde deveria estar o boneco. A princípio imaginou que a retirada do boneco registrasse o fim da farra. Depois entendeu tudo. Aliás, sempre entendera, desde a noite em que Coqueiro tivera uma idéia luminosa. Mas demorou a agir. Relutava em aceitar o óbvio fato de que Eustáquio era uma pessoa, e uma pessoa que precisava de ajuda. Foi ao balcão da mercearia e trouxe consigo algo volumoso na cintura. Mas quando correu para a pracinha, era tarde demais. O corpo de Eustáquio Fontes de Menezes, embebido de gasolina, ardia como uma pira.
A voz de Coqueiro conseguia sobressair-se ao frenesi da pequena multidão, feroz e convulsa, e aos alegres fogos de artifícios que se seguiram à queima do Judas de carne e osso:
- Deixo minha ceroula para a puta de minha falecida, que fodia com Benevides, o motorista que eu mandei matar!
Pela primeira vez, o populacho apenas aplaudiu. E aplaudiu com educação, demoradamente. Era o fim do espetáculo.
7
UM CERTO DEPOIMENTO EM UMA CERTA DELEGACIA DE POLÍCIA
(ÚLTIMA PARTE)
“.... que não viu quem ateou fogo em Seu Eustáquio. Que não sabe dizer se Eustáquio já estava morto quando seu Jacó atirou na cabeça do ancião. Que o tiro foi de misericórdia, mas àquela altura o homem não gritava mais. Que é possível que Eustáquio estivesse desmaiado, mas não pode dizer com certeza. Que Jacó teve de escapulir, para não se linchado. Que se arrepende de sua participação no episódio. E como nada mais foi dito e nada mais foi perguntado...”
8
NOVAMENTE UM JUDAS DE PANO

Naquela noite, muitos judas foram queimados nas ruas do Recife.
Mas, na pracinha do Beco do Abacaxi, o JÚDAS SEU EUSTAQUIO, estirado no chão, espiava, por trás dos óculos escuros, a fumaça que subia ao encontro das estrelas.
Próximo ao judas de carne e osso - agora carne calcinada, aqui e ali convertida em cinza, a esfriar sob a garoa da noitinha -, o JÚDAS SEU ESUTÁQUIO também mirava, pelo canto do olho, com azedume, o ser esquálido e chamuscado que lhe usurpara toda a glória e o justo destino.
Desconjuntado, com uma torção no corpo, em parte virado para cima, em parte para baixo, um braço mergulhado nas costas, o outro estirado sobre a cabeça, a olhar com ciúme a fumaça de outros judas que subia às estrelas, o judas de pano aguardava, inconformado, mas pacientemente, a chegada da polícia técnica, para ser periciado.
Obs.: Caso queria comentar este conto, escreva para paulosoriano@gmail.com. Obrigado.
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