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segunda-feira, 21 de junho de 2010

O Gárgula


“Todo mito ou lenda tem um fundamento real.”
— Spencer
Alguém bate na porta. Domênica atende.
— A senhora se chama Domênica? – pergunta um homem de aparência bastante simples, carregando uma pasta na mão.
— Sim. – responde Domênica, um pouco surpresa.
— É um prazer conhecê-la, senhora Domênica. Meu nome é Marcos Silva, eu sou médium. E estou aqui a pedido de seu irmão Carlos, ele quer muito falar com a senhora.
— Como assim? Meu irmão morreu dias atrás!
— Eu sei disso, senhora. É por isso que eu estou aqui. E ficaria muito agradecido se a senhora me convidasse para entrar.
— Claro, entre. – diz Domênica um pouco desconfiada.
Domênica pede para que o médium sente no sofá, mas ele prefere ficar na mesa, onde põe alguns papéis e uma caneta que estavam em sua pasta.
— A senhora acredita em espiritismo, Domênica? – pergunta o médium.
— Não sei se posso acreditar nisso. Não estou familiarizada com o assunto.
O médium põe as mãos cruzadas sobre a mesa, e olhando fixamente para Domênica, tenta dar uma breve explicação. Diz que muitas pessoas, após a morte, precisam resolver um assunto que ficou pendente no plano terrestre, caso contrário terão dificuldades para evoluir espiritualmente. E esse era o caso de seu irmão Carlos, ele precisava falar com ela, queria sua ajuda.
— E como ele vai falar comigo? – pergunta Domênica, sem saber se acreditava ou não.
— Através da psicografia, que é um método em que o espírito usa para se comunicar com os vivos. – responde o médium apontando para os papéis sobre a mesa – Tudo que ele disser eu vou escrever nestes papéis que a senhora está vendo.
Mas Domênica parece um pouco confusa.
— Escute, senhor Marcos. Meu marido ainda não chegou. Não sei se devo...
O médium a interrompe:
— Sei que você e seu irmão não eram muito próximos. Ele me disse isso. Mas você precisa ouvir o que ele tem a dizer. Carlos está precisando de ajuda, e quer que você o ajude. O motivo eu não sei, mas isso vai trazer conforto ao seu coração.
— E o senhor vai fazer isso agora? – pergunta Domênica.
— Sim – responde Marcos.
— Tudo bem. Eu precisava mesmo de algumas respostas. Não que eu acredite completamente nisso, mas respeito sua crença. Nunca entendi direito o meu irmão, mas não foi minha culpa minha ele ter morrido do jeito que morreu. Ele estava louco!
Marcos apenas diz:
— Eu entendo. Não se culpe por algo que você já foi perdoada. – Então ele põe a mão esquerda sobre a testa, e com a direita começa a escrever. E assim começa a psicografia:
“Minha irmã Domênica, eu a perdôo.
“Quando eu era vivo, tive que cuidar de nossa mãe doente na casa dela. Você sabe disso. Eu não preciso dizer. Mas o que você não sabe é que passei várias noites sem dormir direito por causa dela. Muitas vezes, durante a madrugada, eu era acordado pelos gritos de nossa mãe. Ela pedia socorro, queria água, estava com falta de ar, etc. Eu sozinho tive que cuidar de uma senhora doente.
“Você raramente nos visitava. Mamãe sentia muito a sua falta. Mesmo assim, eu te perdôo.
“Tive também que cuidar da casa, do jardim e das tarefas domésticas. Eu já estava bastante acostumado com essa casa. Mas quando mamãe morreu, você finalmente apareceu para reclamar seus direitos sobre a casa. Mamãe não fez testamento. E a casa naturalmente é sua porque sou filho adotivo, enquanto você é filha verdadeira.
“Pedi para você me deixar a casa, já que fiquei dez anos nela cuidando de nossa mãe. Além disso, você só aparecia no natal e já morava num apartamento próprio com seu marido. Mas resolveu sair do apartamento para morar na casa. E deixou que eu ficasse apenas se trabalhasse como seu empregado e dormisse no quarto de hóspedes. Mas tudo bem, eu te perdôo. Você não sabia o que estava fazendo. Não sabia o quanto aquela casa significava para mim. Porém, o que tenho a lhe dizer é bem diferente.
“Você lembra que eu sempre fui apaixonado por igrejas? Eu estava na faculdade de arquitetura. Tinha acabado de conseguir uma bolsa de estudos quando me apaixonei pela arquitetura das catedrais. Sempre quis viajar para ver de perto as igrejas góticas que eu só conhecia através de fotografias. Mas me via impossibilitado de fazer qualquer viagem, já que mamãe precisava de mim. E o que me restava era sonhar para combater a loucura que se apoderava de minha mente. Sim, cuidar de minha mãe estava me deixando louco. Eu me sentia um enfermeiro escravo de um hospital quase vazio, assombrado pelo fantasma doente de minha mãe.
“Nunca vi nada tão belo como aquelas manifestações artísticas que marcaram o período entre os séculos XII e XVI, inicialmente chamadas de “arte dos godos” pelos artistas do Renascimento.
“O que mais me atraía nessa arquitetura gótica era a forma vertical de suas igrejas, simbolizando o desejo de espiritualidade.
“Domênica, sou agora um espírito que precisa subir tal como a arquitetura dessas igrejas. Mas para isso quero que você me ajude.
“Não me importo mais com as igrejas que não pude conhecer. Quem sabe você não possa conhecê-las por mim? Tenho certeza de que você iria maravilhar-se com o gótico clássico das catedrais de Chartres, de Reims e de Amiens, na França.
“Talvez você ficasse impressionada com o mosteiro da ordem de Cluny, ou a igreja da Madeleine de Troyes, em Paris, onde a arquitetura possui a forma de chamas, num estilo chamado “flamboyant”, que quer dizer flamejante em nossa língua.
“Recomendo também uma visita à abadia de Westminster, nas ilhas britânicas.
“É como se eu já tivesse visitado todos esses lugares, como se eu fizesse parte deles. Mesmo os conhecendo apenas por fotografias, sinto que já vivi na época em que surgia essa arquitetura.
“Por isso, recomendo também uma visita às altas torres e esculturas que decoram as portas e os vitrais das catedrais de Burgos, Toledo e Leon, na Espanha.
“Você iria ficar impressionada com as esculturas. Elas parecem estar em movimento, ou de alguma forma se expressando. Sempre com imagens de Cristo e da Virgem, e sempre mostrando um lado humano na divindade.
“É incrível como as esculturas, em suas posições e formas, narram claramente e de forma didática, a história da vida de Cristo e da Virgem, a Ressurreição e o Juízo Final, as estações do ano e o zodíaco. Tudo isso numa demonstração em que as figuras se relacionam entre si e expressam sentimentos.
“Você vai ficar ainda mais impressionada quando visitar, na Espanha, a Porta do Relógio da catedral de Toledo, o portal da igreja de Santa Maria de Vitória e a Porta Preciosa da catedral de Pamplona. Pois o misticismo aí contido é incrivelmente real.
“A pintura dos vitrais, que são abundantes nas catedrais góticas, pode ser vista em sua forma mais admirável nas catedrais francesas de Chartres e Notre-Dame de Paris, e na de Leon, na Espanha. As cores são muito vivas, brilhantes e dotadas de um detalhismo impressionante devido ao uso da pintura flamenga a óleo, que foi o estilo mais usado e apreciado no mundo gótico. Por isso, sugiro uma apreciação no ‘Políptico da adoração do Cordeiro místico’, de Hubert e Jan van Eyck.
“É claro que essa admiração pela arquitetura gótica levou-me a apreciar suas tendências posteriores. Como é o caso do romantismo e suas tendências medievais. Tal continuação do mundo gótico é chamado de Neogótico ou pseudo-gótico na Inglaterra, que em 1755 é adotado pelo escritor Horace Walpole, criador do chamado romance gótico. Esse escritor mandou construir réplicas de autênticas ruínas góticas em sua famosa residência de Strawberry Hill. Por isso, sugiro que visite também o mais importante monumento neogótico da Inglaterra: o Parlamento, em Londres, construído entre 1837 e 1843 por Charles Berry e Augustus Pugin.
“Porém, antes de visitar todos esses lugares, você deve ter a coragem de visitar o meu túmulo. Vou lhe dizer o motivo:
“Certo dia, consegui visitar uma catedral. Na entrada, bem na porta, havia um gárgula. Um animal de pedra, figura grotesca alada que fica na entrada das catedrais góticas, olhando desafiadoramente as pessoas que entram no local sagrado. A crença diz que os gárgulas protegem as igrejas de invasores indesejados. Há também a lenda que diz serem eles verdadeiros seres num corpo de pedra, do tamanho de um homem. Mas esse era pequeno. Não chegava nem na minha cintura.
“O fato é que quando olhei para o gárgula, não consegui entrar na igreja. Tive a impressão de que ele estava vivo, que realmente estava me olhando, me desafiando. Fiquei com medo de entrar na igreja. Tentei várias vezes. Abandonava e depois voltava ao local constantemente, mas não consegui. Aquele maldito ser infernal estava atrapalhando minha visita. Eu simplesmente não conseguia entrar na catedral!
“Foi então que resolvi tirá-lo de lá para que ele não atrapalhasse mais a minha entrada. Sim, eu roubei o gárgula!
“E não parou por aí.
“Levei aquela criatura de pedra para o meu quarto.
“Na época mamãe já tinha morrido.
“Deixei o maldito sobre a mesa, próximo à porta. Fiquei um bom tempo observando sua face, como seu olhar metia medo e como parecia vivo! Fiquei tanto tempo observando o gárgula que nem me dei conta de que dormi. Sonhei com o gárgula. Parece irônico, mas nem em meus sonhos ele me deixou em paz. Sonhei que ele se aproximava cada vez mais de mim com aquele seu olhar desafiador.
“Seus olhos foram ficando vermelhos, como sangue. E de sua boca começou a jorrar sangue. Em grandes quantidades!
“Acordei horrorizado. E lembrei que muitos gárgulas serviam de goteira esculpida para escoar a água das calhas longe das paredes. Já o sangue me fez lembrar do sangue de Cristo.
“Percebendo minha loucura, voltei a mim, sentado na cama, e olhei o gárgula sobre a mesa. E para não afundar ainda mais na insanidade, resolvi tirá-lo de meu quarto. Mas tive medo de tocá-lo!
“Em seu olhar desafiador, ele me impedia.
“Resolvi então sair do quarto. Mas não consegui! O gárgula estava ao lado da porta me desafiando. Parecia dizer: ‘Ouse passar por aqui!’.
“E fiquei no meu quarto. O dia inteiro, a noite inteira.
“Não havia janela, você sabe. E eu estava com fome. E desesperado.
“Seria um aviso? Uma maldição?
“Ele parecia dizer: ‘Olhe para os meus olhos... e morra!’.
“Fiquei pensando se isso não poderia ser fruto da minha imaginação. Uma neurose baseada numa fantasia criada por mim mesmo. Mas nossas fantasias, as que criamos, não poderiam tornar-se realidade? Quando fantasiamos muito sobre algo, isso não poderia ter sido influenciado por algo real? E se aquele gárgula, que parecia não estar vivo, que parecia não estar ali, realmente estava? Hoje sei que pode haver uma presença onde a sentimos, mesmo que de forma absurdamente fraca. Estaria a estátua possuída por uma presença que foi fruto de uma fantasia alimentada ao longo dos anos pela realidade? Como a lenda de uma criação tão perfeita, mesmo que fantasiosa, passa de geração a geração sem possuir origem? Será que matamos constantemente nossas aberrações que constantemente reclamam por seu lugar na existência?
“O fato é que eu não conseguia passar pela porta do meu quarto, não conseguia sair com o gárgula impedindo minha passagem. Também não conseguia tirá-lo dali, pois eu tinha medo de tocá-lo. Pior: eu não conseguia me aproximar dele.
“Até que tive uma idéia. Resolvi quebrar a parede do quarto. E seria melhor fazer isso o mais rápido possível para não morrer de fraqueza. Essa idéia me veio à cabeça quando me deparei com a minha mesinha de aço, que usava como suporte para o meu vaso de planta.
“Retirei o vaso de cima da mesa e, erguendo firmemente a mesa, comecei a dar fortes golpes na parede. Mas não estava sendo nada fácil quebrar a parede. Depois de muito esforço, uma rachadura foi tudo o que eu consegui. Mesmo assim, continuei tentando. E golpeava a parede cada vez mais, desesperadamente.
“De repente a porta do meu quarto começou a vibrar. Era alguém querendo entrar.
“Com medo, faço tanto barulho na parede, e grito tanto, que quase não reconheço sua voz, Domênica.
“Você pergunta o que está acontecendo, e eu respondo que o gárgula não me deixa sair do quarto. E então você me acusa de estar inventando histórias para não sair da casa, e vê um motivo para finalmente me expulsar do meu lar. Esse motivo era que eu estava louco e precisava ser internado para tratamento médico.
“Cheguei a pensar que você poderia entrar e tirar o gárgula do meu quarto. Mas o desespero era tão grande que eu tinha medo de você também não conseguir tocá-lo, ou que algo ruim poderia acontecer se eu me aproximasse da porta para abri-la.
“Você chama a polícia. Os policiais arrombam a porta e me agarram no exato momento em que eu estava quase saindo pelo buraco que tinha acabado de fazer na parede! Mas tudo bem, eu te perdôo por isso, minha irmã. Você não entenderia. Você não tem culpa.
“Os policiais me arrastam em direção à porta. Fico desesperado enquanto sou puxado cada vez mais para perto do gárgula. Eu grito, luto com todas as minhas forças, mas em vão. Meu coração bate acelerado, e quando passo pela linha divisória da porta entre o meu quarto e a sala, tenho um ataque cardíaco e acabo morrendo ali mesmo.
“Talvez a causa de minha morte fosse o medo ocasionado pela minha superstição. Mas o que não consigo entender é que mesmo após a morte esse gárgula ainda me atormenta. E isso é estranho porque já não preciso ter medo de mais nada, e chego à conclusão de que se não foi o medo, o que foi então? O gárgula?
“Sim. Mesmo após a morte ele me atormenta. Não sei que idéia absurda foi essa a sua de me presentear com um pertence meu, colocando-o sobre o meu túmulo para me homenagear. Mas saiba que por causa DELE, não estou conseguindo fazer a passagem definitiva e completa para o plano espiritual. Portanto, tire esse maldito gárgula de cima do meu túmulo!”.

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